Como entusiasta automotivo, dicilmente fugimos da árdua atividade de testar algo novo. Confesso, no entanto, que há algumas novidades que me fizeram fugir um pouco da tentação de conhecê-las.
Uma delas são os carros elétricos, como o Tesla. Queira ou não, em um futuro não muito longe, tudo aquilo que aprendi a amar relativo a motores a combustão dará espaço a algo recarregável e movido por baterias.
Outra coisa que eu vinha evitando era justamente dirigir a atual geração do Porsche 911 – a 991.2. Atualmente, a nostalgia é um apelo que me fascina muito. Eu cresci em uma era na qual carros sobrealimentados por turbina eram considerados rápidos, brutos e, por falta de melhor palavra, grosseiros, devido a algo chamado turbo lag. Nada substitui o prazer de um bom e velho motor aspirado buscando altos giros para entregar peformance, mesmo que isso signifique um desempenho inferior.
Tempos modernos exigem medidas drásticas para que as montadoras se adequem à normas cada vez mais restritivas de emissão de poluentes e consumo de combustível. É nesse contexto que surge o downsizing, cuja ideia é simplesmente pegar um motor menor e sobrealimentá-lo, de maneira a entregar o mesmo nível de performance de um motor maior, mas sem fazer ursos polares chorarem.
Junto com o downsizing vieram outras tecnologias que acabaram com muitos dos preconceitos relativos aos motores sobrealimentados. Turbinas de geometria variável, por exemplo, inauguradas na Porsche pelo 911 Turbo em 2006, entre muitas outras. Foram-se os tempos de turbo lags gigantescos ou de respostas de acelerador esquisitas.
A realidade é que carros turbinados, hoje em dia, são muito parecidos com motores aspirados, só que com a aquela dose cavalar de torque que não estávamos acostumados nos bons tempos de altos rpms.
Naturalmente, era uma questão de tempo até que o downsizing chegasse ao lendário 911. Parte de mim ficou com o coração partido quando chegou a geração 991.2. Adeus ao motor 3.8, 6 cilindros boxer e aspirado, que finalmente tinha um ronco muito bacana no Carrera 991.1. Olá, 3.0, 6 cilindros boxer e turbo.
Não me entendam errado. Evoluir é preciso. Não vou aqui fazer um discurso tentando ressaltar como os 911 Carrera aspirados são melhores do que o atual modelo, porque simplesmente NÃO SÃO! E qualquer tentativa de dizer que o 911 Carrera “turbo” não é um 911 não é só um argumento antiquado, como também estúpido.
A questão “nostálgica” é que o Carrera sempre foi o seu caminho mais all around dentro dos modelos do 911. O fato dele ser aspirado fazia com que você tivesse um nível de força adequado para 90% das ocasiões. Para aqueles outros 10% você tinha a opção de comprar o mais caro 911 Turbo. Se você fosse um rato de pista, obviamente, o Carrera não era e nunca foi o animal mais acertado da linha, mas era mais do que apto a uma ou outra missão nesse quesito. Para aqueles mais “iniciados” na arte do track day, você poderia recorrer a um GT3, também mais caro!
Um 911 aspirado sempre foi um carro único e distinto. Um clássico na minha opinão, a despeito de alguns “profundos entendedores automotivos” o considerarem um carro manco (como se performance em linha reta de um carro com mais de 350 cvs e cerca de 1400 kgs fosse o principal aspecto a se considerar). Hoje em dia, você não tem mais opção. Se você quiser um Porsche 911 aspirado, sua escolha fica restrita a compra de um GT3.
Vamos ao carro!
O PORSCHE 911 CARRERA 991.1
No coração… ou melhor… na bunda do atual 911, pulsa um motor 3.0, 6 cilindros, boxer e turbo. As turbinas não são de geometria variável. O carro que tive a oportunidade de testar é um Carrera não “S”. Ou seja, o modelo “de entrada” da atual linha do Carrera.
O carro analisado em questão veio com o opcional do escape esportivo original Porsche e o Sport Chrono Package, que lhe dá acesso ao modo mais agressivo de tocada, o Sport Plus. Estamos falando de 370 cvs e 46 Kgfm. Apenas para colocar em referência, a potência pode não dizer muita coisa, mas o torque do Carrera é razoavelmente maior que o do antigo Carrera S aspirado. Isso fará toda a diferença quando eu for falar sobre a tocada. Guarde esse dado com você!
O câmbio é a última encarnação do PDK de 7 marchas. Ainda mais afiado, rápido e suave nas trocas do que o do antigo modelo.
A Porsche declara que esse modelo em específico é capaz de fazer de 0 a 100 km/h em 4,2 segundos com o controle de largada e atingir a máxima de 293 Km/h. Ou seja, em termos de aceleração, compatível com o antigo modelo. Perde um pouquinho para o antigo Carrera S em velocidade final
Em suma, no papel, está mais do que provado que em 99% das ocasiões o atual Carrera tem condições de peitar de frente o antigo Carrera S aspirado. Se o papel bastasse, eu pararia por aqui, pois, na prática, trata-se de um animal muito diferente.
Por dentro, nada menos do que aquela sensação de ótima construção e engenharia de ponta. Os materiais são excepcionais (em especial nessa versão quase que full spec do Carrera de entrada). Couro de ótima qualidade para todos os lados. Botões com ótimo material. Aquele tipo de coisa feita para durar. Curiosamente, a cabine, apesar de ser bem mais tecnológica do que as das gerações anteriores (997, 996 etc.) passa uma sensação de “confusão” maior. São muitos botões e opções.
Méritos para a nova PCM, que já é velha conhecida para mim, mas que é excepcionalmente intuitiva de se usar.
A TOCADA DO CARRERA 991.2
Ignição dada e um ligeiro receio que tinha parece ser verdadeiro. No antigo 991 aspirado, o motor, ao ser acordado, tem um timbre mais bravo. A Porsche realmente havia se empenhado em mostrar que era capaz de produzir algo original de fábrica que soasse especial, já que o Carrera 997 era extremamente mudo ao dar partida.
Carros turbo naturalmente tendem a ter um ronco mais abafado e aqui não é diferente, mas não dá para julgar com base nesse detalhe.
Começo trafegando vagarosamente com o novo Carrera. Como sempre, um senhor carro esportivo prático de usar. Não é gigantesco. Tem as dimensões certas e uma ótima visibilidade externa.
Os modos de condução são selecionados através de uma “rodela” do lado esquerda da direção – lá estão o modo normal, sport, sport plus e, a novidade, individual, que lhe permite escolher o que você mais gostou dos demais. Gire-a no sentido horário e você transitará por eles.
Andando no modo normal, o Carrera é um carro de passeio comum como qualquer outro. Isso já está até ficando velho de tanto que eu falo. Então, vou pular essa parte e seguir diretamente para o ponto que vocês estão esperando – conduzir o carro no sport plus.
Aqui eu tenho tudo que o 911 pode me entregar para desempenho. Costumo apenas desativar o modo mais esportivo do PASM, que regula a rigidez da suspensão, quando trafego na cidade. Curiosamente, a primeira surpresa é como o carro não fica desconfortável ao andar com a PASM no modo mais agressivo. Esse carro pula menos que as gerações anteriores, mas será que isso implica em sacrifício de tocada? Como eu veria mais adiante, não!
Inicialmente, peguei alguns trechos mais abertos de reta para abrir bem o atual 3.0. A primeira impressão é que o carro ficou frenético em termos de ritmo como a velocidade sobe, mas você sente muito menos do que no antigo aspirado. A única coisa que você se percebe com clareza é um “aperto” contra o banco que você nunca sentiu em um Carrera. Isso chama-se torque.
Logo a partir dos 2000 rpms você já se sente pressionado contra o banco. A entrega de desempenho é completamente linear até os 6500 rpms. É uma sensação curiosa. Sonoramente, a sinfonia vindo de fora é diferente daquele grito rouco do aspirado. Você sente o barulho das turbinas enchendo, há personalidade, mas não é a mesma coisa do que a do irmão 911 Turbo. A sensação é ainda de um carro aspirado, por mais esquisito que isso possa ser.
Se não fosse pelo torque e pelo sopro das turbinas, você acreditaria estar dirigindo um carro aspirado. Pontos para a Porsche nesse sentido. Ok, não ronca alto como o antigo motor, mas tem personalidade suficiente. É como se a montadora disse a você: “Olha, eu vou tirar um pouco da trilha sonora, mas vou lhe dar torque, pode ser? Não venha me dizer que você prefere ronco, tá!”
A questão é que você se assusta quando olha para o velocímetro. Quem estava acostumado a ficar pendurado nos rpms em um Carrera, naturalmente gosta de pressionar o pedal da direita com vontade. Você fica esperando aquele momento que o boxer vai abrir com vontade, mas ele não chega e, de repente, o PDK empurra mais uma marcha… mais outra… mais outra… Olha para o painel e solta um “C******!”
Assassino frio… ninja…
Resolvi passar o PDK para o modo manual, pois, afinal de contas, é a forma como eu gosto de interagir com a caixa. Não tem muito o que falar. É excepcional. Desafio alguém a achar um defeito nesse câmbio. A interação pelos comandos manuais das borboletas atrás do volante continua sendo um padrão de qualidade a ser seguido. Continua sendo uma caixa mais “de rua” do que aquela vista no GT3, mas é muito boa.
Se eu estava convencido até agora da performance, eu havia me incumbido de achar algum defeito! Pensei que comigo: “vou engatar uma quinta ou sexta marcha e tenho certeza que verei um turbo lag”. Ele existe? Sim, mas, honestamente, mantendo o carro acima dos 2000 rpms em marchas mais altas, o Carrerinha empurra os giros de uma maneira que faria os donos de Carrera aspirados chorar. Talvez, a pouca letargia que eu tenha visto ainda deve ser fruto justamente de ser um carro com 370 cvs e 46 kgfm de torque. O Carrera S “turbo” deve ser ainda mais ágil.
Pensei novamente comigo: “se o turbo lag é difícil de achar, certamente deve haver retardo nas respostas de acelerador”. Dessa vez, não foi o caso. Para mim, o nível de resposta entre acelerar, desacelerar e acelerar novamente são compatíveis com o nível de resposta que eu tinha em qualquer outro aspirado. Ou seja, magia negra Porsche novamente em ação.
Mas se eu havia me convencido positivamente dos novos tempos e do motor turbo, eu ainda veria a melhor surpresa do atual modelo – a direção e o chassi. Não me entendam errado, mas, para mim, apesar de estupidamente direta, a direção do Carrera 991 era anestesiada em termos de sensação. Na minha opinião, a assistência elétrica havia estragado uma das coisas mais animais da geração 997. Você simplesmente não sentia mais a via sobre a qual trafegava.
A Porsche havia prometido melhorar nesse aspecto e cumpriu muito bem no 991.2. A direção ainda tem assistência elétrica sim, só que agora ela é mais pesada do que no 991.1. Continua sendo direta, mas você tem mais feedback do carro todo atrávés dela. Se a Porsche tivesse feito isso em 2012, eu certamente não teria muito o que continuar elogiando o antigo 997.
Agora, o maior exemplo de quão refinado o atual Carrera ficou é quando fui tomar uma curva que faço praticamente com todos os carros que conheço. É uma curva de média/alta velocidade, com espaço consideravalmente amplo para sentir alguns limites. Digamos o seguinte: a bordo de um Carrera S 997 eu faço aquela curva a 110-120 km/h com o carro no fio da navalha,sentindo estar próximo do limte; no 991.1 eu faço na mesma velocidade, mas com muito menos sensibilidade de volante, o que chega a transmitir um falso senso de segurança; e no 991.2 o carro faz a mesma curva, na mesma velocidade, com um feedback animal de volante, mas com um senso de tranquilidade que o modelo anterior só pode sonhar.
CONCLUSÃO
Eu queria muito vir aqui dizer para vocês o quanto eu me desapontei com o atual Carrera. O quanto o motor turbo é frio comparativamente ao aspirado. O quanto o carro é um playstation. O quanto o Carrera aspirado é melhor. Porém, isso não é possível. Posso até argumentar em prol de algo nostálgico em favor dos antigos 911. O correto é chamar os antigos aspirados de diferentes. Há quem vá sempre preferir a direção hidráulica e a sensação mais “mecânica” ou “analógica” dos antigos 911, mas em termos de performance, desempenho e tocada, é impossível não reconhecer o quanto o novo Carrera turbo é superior em qualquer sentido comparativamente a qualquer Carrera aspirado que veio antes.
A direção é praticamente hidráulica em termos de sensação, mas tem agora a precisão do conjunto elétrico. O carro é muito mais estável e plantado em curvas de alta e média. Se antes você tinha que espremer até a última gosta de rpm do aspirado para ter acesso à performance do carro, agora, basta beliscar os 3000 rpms para as coisas começarem a acontecer.
Em termos absolutos, em linha reta, diria que o Carrera de entrada 991.2 e o antigo Carrera S 991.1 são equivalentes, com a diferença que o modelo anterior entregava desempenho bem acima dos 4500 rpms e coitado de você se caísse abaixo disso, enquanto que no atual modelo você sempre tem força acessível. As marchas são curtas (subjetivamente mais do que no antigo aspirado) e você está sempre em um ponto da banda de rpms que há força disponível.
Na minha opinião, esse talvez devesse ter sido o salto evolutivo do antigo 997. Não que o 991.1 seja ruim. Pelo contrário, mas acho que o 991.2 acertou a mão nos pontos onde o antigo errou (em especial na direção). Em suma, o 991.2 é uma ótima interpretação do Carrera e é uma blasfêmia alguém dizer que não é mais um 911.
Korn valeu por passar a experiência deste carro. Sempre ótimos reviews!
Fico imaginando a próxima geração, no sentido do que virá. Talvez algo de elétrico com torque instantâneo. Seja qual tecnologia o carro use, o que não se pode perder, é a tocada e aquela boa velha sensação homem interagindo com a máquina.
Abraço.
Obs: no titulo em baixo vc colocou 991.1 mas seria 99.2
Muito legal a matéria, não tive oportunidade de dirigir o carro mas com o detalhamento e precisão do texto acredito que se um dia dirigir ja tenho uma boa noção do brinquedo. Grande abraço.
Nada melhor do que ler algo sobre Porsche, escrito por um cara que entende de Porsche. Excelentes colocações Korn!
Vi um Carrera S 991.2 cinza, rodando aqui em Sorocaba. O carro é simplesmente sensacional na minha opinião! Lindo de viver!
Um grande abraço Korn.